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PARAR PARA PENSAR UMA ESCOLA RURAL: um estudo por meio de narrativas orais
STOP TO THINK ABOUT A RURAL SCHOOL: a study through oral narratives
Revista de História da Educação Matemática, vol.. 6, núm. 3, 2020
Sociedade Brasileira de História da Matemática

DOSSIÊ - HISTÓRIAS DE UMA CONSTITUIÇÃO DE SABERES MATEMÁTICOS NO ENSINO

Revista de História da Educação Matemática
Sociedade Brasileira de História da Matemática, Brasil
ISSN-e: 2447-6447
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 6, núm. 3, 2020

Recepção: 28 Junho 2020

Aprovação: 11 Agosto 2020


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este artigo é um desdobramento de uma pesquisa de mestrado que potencializou o uso de narrativas, produzidas de acordo com os parâmetros da História Oral, para tecer compreensões sobre uma proposta educacional rural – os Grupos Escolares Rurais –, uma experiência educacional pública do estado do Paraná, instituída por volta de 1940 e extinta em meados da década de 1970. Nesta pesquisa o objeto de estudo foi o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, localizado em um complexo de uma Usina de Açúcar e Álcool, construído em 1947, no município de Bandeirantes, na região norte do estado. Tratava-se de um modelo de escola tipicamente urbano, porém instalado na zona rural, para atender, basicamente, os filhos dos colonos. Para a realização da pesquisa foram produzidas narrativas com ex-alunos e ex-professoras dessa escola. O objetivo, neste texto, é revisitar as narrativas, originalmente orais, e disparar uma discussão sobre como elas permitem compreender a escola para além de suas funções e de seu papel social, contribuindo para pensar em outros de seus elementos constitutivos. Apresentam-se, então, algumas reflexões que extrapolam os resultados da pesquisa de mestrado em que essas narrativas sobre o Grupo Escolar foram produzidas. A lente teórica para este novo exercício analítico é Larrosa (2017), e por ela busca-se parar para pensar uma escola rural, intencionalmente construída para atender um público específico, considerada como modelo por aqueles que narram suas memórias saudosas, pelas quais se edifica a liderança forte de uma diretora, o ensino pautado na tríade ler-escrever-contar e um espaço tomado por regras e obediência.

Palavras-chave: História Oral, Grupo Escolar Rural, História da Educação Matemática.

Abstract: This article is a consequence of a master's research which enhanced the use of narratives produced according to the parameters of Oral History to make understandings about a rural educational proposal (Rural School Groups), a public educational experience in the State of Paraná, instituted around 1940 and extinguished in the mid 1970s. In this research the object of this study was the Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, located in a complex of a Sugar and Alcohol Plant, in the municipality of Bandeirantes, in the northern region of Paraná state, built in 1947. It was an urban school installed in the countryside to serve, basically, the children at the colonists. To carry out the research, narratives were produced with former students and teachers at this school. The purpose of this text is to review the narratives and trigger a discussion about how these oral narratives allow us to understand the school beyond its functions and its social role, contributing to thinking about other constituent elements. We present some reflections that extrapolate the results of the master's research in which oral narratives about the School Group were produced. Our theoretical lens for this new analytical exercise is Larrosa (2017) and through it we try to stop to think about a rural school, intentionally built to serve a specific audience, considered as a model of school by those who narrate their nostalgic memories, where it is built the strong leadership of a director, teaching based on the triad reading-writing-counting and a space taken by rules and obedience

Keywords: Oral History, School Group Rural, History Education Mathematics.

APONTAMENTOS INICIAIS

O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história, sempre tolerante [...] o tempo, o tempo, o tempo e suas mudanças, sempre cioso de sua obra maior, e, atento ao acabamento, sempre zeloso do concerto menor, presente em cada sítio, em cada palmo, em cada grão [...] (Nassar, 2016, p. 29).

Nessa perspectiva, propomos considerar a escola como uma montagem provisória, instável e composta de artefatos, desenvolvendo termos de valores, normas e relações interpessoais, um arranjo particular de pessoas, tempo, espaço e matéria. Este escrito constitui um exercício para constatar que estamos abertos à análise do outro, é um deixar-se levar pelas discussões, para mostrar aspectos da escola, do estar na escola, do ordinário da escola, de uma memória escolar em suas atualizações, do cotidiano escolar, do repetitivo da escola– enfim, de aspectos que a compõem e a fazem existir como lócus de espaço e tempo, sem temer o caos que, ao fim, se mostra pleno de estabilidade.

Isso não seria possível sem as proposições fundamentais, as articulações, a disposição de cenários e a reunião de personagens tão inspiradores. Então, buscamos nas narrativas produzidas durante uma pesquisa de mestrado aspectos que nos dissessem da realidade e dos modos como podemos compreender uma proposta educacional rural paranaense, os Grupos Escolares, em especial o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, localizado em um complexo de Usina de Açúcar e Álcool, no município de Bandeirantes, norte do estado do Paraná, no final da década de 1940.

As narrativas nos permitem problematizar e, ao fazerem isso, potencializam o que o sujeito, enraizado num tempo-espaço, fala sobre como percebe esse tempo a partir da memória que tem de outros espaços e tempos (De Souza & Andrade, 2020, p. 94).

Nossa pesquisa insere-se no âmbito da História da Educação Matemática, e o nosso objetivo explora um cenário mais amplo da escola: trazemos um olhar para o que foi uma escola rural e que, ao ser constituída narrativamente, vai nos revelando alguns de seus aspectos e nos permitindo perceber questões mais específicas do ambiente escolar.

Salientamos que, neste artigo, apresentamos algumas reflexões que extrapolam os resultados da pesquisa de mestrado em que foram produzidas as narrativas orais sobre o Grupo Escolar. A intenção deste texto é olhar novamente para as narrativas orais, fundamentados, agora, em Larrosa (2017), como balizador para conduzir-nos a uma escola ou a uma ideia de escola que, por muito distante que esteja das convenções de nossa época, ainda pode ensinar-nos mais algumas coisas.

O que nos move é a intenção de interrogar os modos de uma escola rural, no sentido de Larrosa (2017), como um mostrar o que é, um fazer existir. “A ideia então era pensar o lugar da escola, ou melhor, o que compõem uma escola, num mundo que parece se preocupar apenas com sua função ou sua dissolução” (p. 11). É uma busca por concepções do que foi uma escola rural, um deslocar a discussão para além da função e do papel social da escola, a fim de pensar em seus elementos constitutivos.

A continuidade não é um dado imutável; pensar a partir de uma perspectiva que parte de movimento e da instabilidade obriga a nos perguntarmos quais são as condições e operações que tornam possível essa montagem particular e heterogênea, esse gesto de suspensão de um tempo e um lugar e de profanação do conhecimento, e o que sustenta unida e relativamente estável a instituição escolar (Larrosa, 2017, p. 95).

Para a produção das narrativas, na nossa pesquisa, mobilizamos a metodologia História Oral e, como afirma Garnica (2014), pesquisar em História Oral implica trazer à cena as narrativas, suas potencialidades e suas formas.

Talvez fosse mais correto afirmar que o pano de fundo para nossas práticas de pesquisa são as narrativas (não a História Oral) e que, sendo possível compor essas narrativas de modos distintos, a História Oral tem sido, dentre as tantas possibilidades, o modo mais frequente mobilizado (Garnica, 2014, p. 57).

As narrativas podem ser compreendidas, assim, como um ponto de partida para as compreensões históricas envolvendo História Oral e Educação Matemática. É com elas que, aqui, buscamos criar nossos discursos sobre as instituições escolares, em especial sobre um Grupo Escolar Rural.

No entanto, para nós, “o narrado não é, e nem tem a pretensão de ser, o registro ‘real’ do passado” (Gonzales & Garnica, 2019, p. 145). Tais narrativas podem ser consideradas como portas de entrada, narrativas particulares enunciadas por sujeitos únicos, narrativas que mobilizamos a partir dos pressupostos teórico-metodológico da História Oral e que nos auxiliam a compreender nosso objeto de interesse. É importante entendermos que

o território se modifica se modificarmos as lentes que o observam, a mudança de escala implica em aumento ou diminuição de detalhes que podem ser fundamentais para um determinado estudo. Enxergar o acontecido na escola, do ponto de vista de quem por ali passou, é tão importante quanto entender o movimento das pessoas que chegaram ou saíram da zona rural, ou que se movimentaram dentro dela levados por políticas públicas, movimentos sociais, processos econômicos e culturais (Oliveira & Martins-Salandim, 2019, p. 3).

Esperamos que este texto – um desdobramento de uma pesquisa de mestrado que potencializa o uso de narrativas por meio da História Oral para tecer compreensões sobre uma proposta educacional rural – não só contribua para fomentar discussões ligadas às escolas rurais e à mobilização de narrativas orais, mas também permita refletir, de algum modo, sobre o que é uma escola, considerando sua localização, seu contexto e quais aspectos podem constitui-la. Apoiados por Larrosa (2002), esperamos que essas narrativas produzidas nos proporcionem interessantes experiências, nos transformem de alguma maneira, pois são movimentos que abrem novas possibilidades de apresentar e de criar novas identidades de escola(s).

Isso posto, no que segue, apresentaremos algumas considerações sobre a História Oral que temos praticado e mobilizado em nossos trabalhos e exporemos o que nos foi possível compreender sobre essa escola, ao lançar nosso olhar para as narrativas orais, tendo Larrosa (2017) como nossa lente teórica. Algumas concepções sobre o modo de existir e de explorar aspectos da escola rural abrem nossas ponderações.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: mobilizando a História Oral

A História Oral em Educação Matemática, que temos estudado e mobilizado em nossas pesquisas, é uma metodologia multifacetada cujo elemento essencial são as memórias de atores sociais muitas vezes negligenciados pelas abordagens oficiais. Essa metodologia ressalta a importância da oralidade, do vivenciado, da vida das pessoas, para compreender um fenômeno que deseja focar e nos possibilita, então, criar “outro texto na procissão de textos possíveis, sem a pretensão de uma significação singular” (Garnica, 2010, p. 46).

Ao assumir os procedimentos da História Oral, prezamos uma metodologia em exercício, “a metodologia se define e ganha contornos durante o caminhar. Ao caminhar, traça-se o caminho” (Nakamura & Garnica, 2018, p. 2).

No horizonte, num beco, num canto de um atalho o pesquisador encontra-se–á munido de experiências que não tinha antes de chegar a esses quase sempre escuros domínios. Encontrar-se nessa possibilidade de perder-se: essa é a tarefa que se impõe, ao fim e ao cabo, aos que decidem aventurar-se nas pesquisas qualitativas (Garnica, 2008, p. 149).

A História Oral nos “ambiciona deixar uma marca no mundo. Ela não termina quando o gravador é desligado, quando o documento é depositado, quando o livro é escrito, ela começa a viver naquele dia” (Portelli, 2016, p. 43). Desse modo, uma abordagem nos parâmetros da História Oral parece ser uma oportunidade para compreender (futuramente) uma escola rural que está constituída desde os traços físicos que a envolvem até as marcas relacionadas às práticas desenvolvidas, possibilitando que sejam disparadas reflexões sobre diferentes concepções.

A mobilização da História Oral, como metodologia para a constituição de fontes orais, parte de depoimentos, e é necessário seguir alguns procedimentos teóricos que auxiliam no desenvolvimento da pesquisa e vêm sendo discutidos entre pesquisadores que têm debatido a História Oral e se utilizado dela em pesquisa, no viés da Educação Matemática. E, mesmo que não sejam aplicados de forma estática, seguindo um mesmo padrão, tais procedimentos estão presentes desde a temática a ser desenvolvida, a escolha dos narradores, a elaboração do roteiro, a realização das entrevistas, a transcrição, a textualização (narrativas) e a análise.

Nesta pesquisa inserimos um viés da História Oral Temática, voltado para um momento específico da vida dos narradores: suas experiências em relação ao Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes e, em vários pontos, as histórias de vida dos narradores entrelaçam-se.

A partir desses pressupostos, consideramos a entrevista um dos modos de registro. A entrevista e a sua posterior transcrição e textualização constroem uma história, e não simplesmente a resgatam ou a retratam. Não intencionamos trazer de volta um passado, mas reencená-lo a partir de outra ou nova interpretação, outra ou nova leitura dos dados a que tivemos acesso. As entrevistas em História Oral não são conduzidas só pelo pesquisador e seu roteiro, pois elas se configuram também pelo entrevistado, cujas experiências, modo de narrar e singularidades interferem no momento da entrevista.

O modo como procuramos conduzir as entrevistas com os colaboradores e, posteriormente, a relação que buscamos estabelecer com cada narrador segue os apontamentos de Portelli (2016) sobre a postura dos que trabalham com História Oral, ou seja, as potencialidades do entrevistador para mostrar-se aberto e responder com ânimo às perguntas. “Eu principalmente escutei o que eles tinham para dizer. Eles viam que eu não os estava estudando, mas aprendendo com eles” (Portelli, 1997, p. 14).

De posse dos áudios das entrevistas, inicia-se o processo de transcrição das entrevistas gravadas, que segundo Vianna (2014), “é o nome que damos à transformação do registro sonoro em texto fiel” (p. 75). Trata-se da escrita, palavra por palavra, e também da tentativa do registro de entonações, das pausas, das expressões de tudo que foi dito naquele momento. O pesquisador procura reproduzir o mais fielmente possível todos os elementos linguísticos no diálogo entre pesquisador e narrador durante a entrevista, sem cortes, nem acréscimos. A transcrição pode ser entendida, ainda, de acordo com Garnica (2014), como o “primeiro momento de transformação da narrativa oral em texto escrito” (p. 58).

Nos afazeres da transcrição buscamo-nos aproximar das indicações de Delgado (2010). Sabemos que potenciais elementos povoam apenas o ato da entrevista e só são passíveis de acesso, ainda que parcialmente, na memória do pesquisador: sorrisos, silêncios múltiplos, olhares, expressões, lágrimas... lances esses que o gravador e os esforços do pesquisador nem sempre dão conta de registrar por meio da escrita.

Dando continuidade aos procedimentos com as entrevistas, realizamos a textualização. Organizamos e ajustamos as entrevistas para que sua leitura seja mais fluente: há uma limpeza de excessos e repetições, buscando, entretanto, manter a especificidade de cada uma, com o compromisso de não transformar o registro em algo artificialmente objetivo e racional. Compreendemos a textualização como um processo de produção de significados, e, segundo Tizzo (2019, p. 379):

ao procedermos com o exercício de textualização, nos envolvemos com um processo de elaboração de compreensão dos aspectos que circundam as experiências que foram narradas pelo depoente, já que tentamos estabelecer coerências para os enunciados, e avaliar os significados que eles têm para quem os enuncia.

Esse texto passa pela leitura do entrevistado, com o intuito de que ele o reconheça como uma leitura plausível do que foi dito e faça as intervenções que julgar necessárias, como, por exemplo, acrescentar ou ocultar informações ou corrigir equívocos. Por fim, se estiver de acordo com a narrativa elaborada, o entrevistado autoriza, por meio de uma carta de cessão de direitos[3], a utilização do material para fins acadêmicos.

A narrativa produzida nesse momento possibilita, aliada a outras, a construção de um mosaico, e ainda, “poderá vir a ser uma fonte para futuros pesquisadores, devendo então ser produzida como registro histórico” (Martins-Salandim, 2012, p. 57). São múltiplos os vieses e as possibilidades de interpretações, pois essas narrativas “nunca serão esgotadas e sempre continuam, sempre podem continuar a nos fornecer argumentos, pistas, resíduos” (Martins-Salandim, 2012, p. 57).

Contudo, a partir desse momento, temos a fonte constituída e, de acordo com Gonzales (2017, p. 38):

Dessa forma, a fonte constituída a partir das negociações não é mais a entrevista em si, nem a gravação dela (na qual já são perdidos vários elementos, como olhares, movimentos, gesticulações), nem a transcrição. O que se tem é a fonte constituída que pode estar repleta de novos significados produzidos pelo colaborador.

As narrativas que produzimos por meio da História Oral nos possibilitam gerar significados, conforme lançamos um olhar e, de acordo com o nosso foco, os óculos teóricos podem nos dar oportunidade de outra ótica, outras possibilidades de interpretações, de caminhos a seguir, pois acreditamos que “as narrativas criam realidade enquanto comunicam” (Garnica, 2014, p. 58).

Percebemos a experiência do Grupo Escolar Rural que estudamos não como uma experiência educacional desmemoriada a ser socorrida, refeita ou reproduzida. Examinamos não por uma explicação desta experiência ou, ainda, por uma fundamentação, mas buscamos versões possíveis que poderiam nos ajudar a elaborar e registrar outras histórias.

No nosso trabalho, as narrativas foram analisadas por meio da análise de singularidades,[4] e cada uma das narrativas foi analisada individualmente, buscando detectar suas peculiaridades; as informações que cada uma delas nos dava sobre o tema que nos propusemos compreender; e o modo como eram narradas. Essa organização, segundo entendemos, permite a exposição e a criação de um Grupo Escolar a partir de um jogo pautado na busca pela interlocução entre pontos, linhas e regiões de conexões entre as narrativas e no interior delas, segundo um olhar que transmuta, um olhar carregado de teorias, de experiências e vozes que autorizam o pesquisador a dizer desse jeito, nesse momento, o que julga plausível e pertinente dizer.

Assumimos, nesses termos, os parâmetros da História Oral como vetores fundamentais, a partir dos quais o pesquisador intencionalmente cria fontes históricas condizentes com as vertentes da história como versões históricas. As narrativas que produzimos por meio das entrevistas com os professores e ex-alunos do Grupo Escolar encontram-se disponíveis, na íntegra, em Souza (2019).

UM EXERCÍCIO DE COMPREENSÃO DE UMA ESCOLA

Na pesquisa de mestrado foram produzidas seis entrevistas com professores e ex-alunos do Grupo Escolar. Por meio de uma conjugação de diferentes perspectivas e enfoques, buscamos entender centros e margens das narrativas orais. Sob nossa ótica, não buscamos encadeamentos para idealizar o passado dessa instituição escolar (não se trata, de modo algum, de romantizar a escola) ou para retornar ao passado (restaurando a escola tradicional).

Nós interpretamos as cercanias, produzindo os depoimentos; interpretamos, quando produzimos as transcrições e as textualizações; e, ainda, a partir do cotejamento das fontes orais constituídas e das referências bibliográficas, construímos um mosaico, desenhamos contornos – ora de subjetividade ou coletâneo, ora de manifestações de tremores ou vibrações, uma captação do disforme do múltiplo e diverso, buscando disparar uma compreensão sobre o que nos propusemos, atribuindo significados ao que obtivemos escrevendo sobre eles.

As fontes orais assumem e ressaltam a multiplicidade dos pontos de vista e nos possibilitam tecer, a partir do presente, outros encadeamentos que fazem emergir cenas que implicam e transigem perceber distintos movimentos e aspectos do Grupo Escolar. São as interpretações que podemos produzir a partir dessas fontes orais. Esses depoimentos versam sobre temáticas que provocam inquietações, interesses, opiniões e concepções que operam como meios de compreender os limites, as fronteiras e as articulações da luta pelo direito à educação; as compreensões e incompreensões dos atores e das situações que constituem o – e se constituem no – espaço escolar.

Assim, passaremos a discorrer sobre as narrativas orais que produzimos e o que elas nos permitiram compreender – que escola foi esse Grupo Escolar, o que instituiu o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, o que ele foi –, para podermos problematizar o lugar da escola em relação às nossas indagações iniciais. As falas desses depoentes, bem como o estudo de documentos específicos sobre a política de ensino dessa instituição, levaram-nos a elaborar uma escritura que, de algum modo, produz elementos para compreender e problematizar os aspectos que constituem uma escola da época, tanto em geral como, mais especificamente, do Grupo Escolar.

***

Em meio a um contexto de colonização, novas e múltiplas demandas são postas para os governantes, com processos de industrialização e urbanização que impõem a escolarização não somente à zona urbana, mas também para a população que nesse período ainda se encontra, sobretudo, situada na zona rural. A complexidade que caracteriza o mundo rural escolar não se limita a esses aspectos, nem mesmo às peculiaridades da escola. O mundo rural comporta hierarquias nem sempre aparentes a olhos desavisados, pois, além das especificidades que decorrem dos territórios nos quais as escolas se localizam – tal como a modalidade de escola aqui pesquisada, localizada numa grande fazenda, cuja implantação se deu por meio do desenvolvimento do cultivo de cana-de-açúcar –, ocorrem, ainda, iniciativas do fazendeiro, o que estabelece um cruzamento de dados históricos significativos.

De tudo o que mobilizamos, percebemos uma série de liturgias que indicam determinados rituais intrínsecos à escolarização, que permeavam o cotidiano do Grupo Escolar e hoje se manifestam como prenúncios nas memórias dos antigos alunos e professoras. Podemos pensar que, nas aulas, esses rituais fossem mais singelos, mas, à medida que a escola republicana se institucionalizava como espaço formativo de cidadãos, fez-se necessário investir em muitos aspectos simbólicos que, pela recorrência com que aconteciam, marcam as memórias daqueles que passaram pelos Grupos Escolares.

O Grupo Escolar, distante três quilômetros da zona urbana do município de Bandeirantes, foi construído em um complexo de Usina de Cana de Açúcar e Álcool, a partir de 1947. Devido às instalações de grandes colônias perto da usina, o dono desta edificou a escola para os filhos dos trabalhadores rurais. Não havia escolas funcionando na região da fazenda, como nos conta Capelo (2013) e, então, foi fundada a modalidade de Grupo Escolar Rural, umas das poucas unidades rurais encontradas no estado do Paraná àquela época. Aqui temos um primeiro estranhamento: a edificação desse Grupo Escolar na área rural, um modelo de escola até então tipicamente urbano (Souza, 1998).

Deixando para trás a estrutura usual das escolas isoladas,[5] mudando a paisagem da educação, a estrutura do Grupo Escolar, segundo as narrativas, era exuberante, funcionava em cômodos planejados, constituídos por algumas salas de aulas, uma para cada turma de alunos e com a seriação por sala. Sobressaíram também, nas narrativas, menções à higiene e à limpeza do prédio do Grupo Escolar. Fundamentadas nesses pressupostos de arquitetura que orientavam a construção dos prédios, encontramos nos documentos que abordam essas instituições escolares, descrições de características relacionadas à estrutura dessas escolas:

Aqui, o prédio oferece melhores condições de conforto e higiene, mesmo quando adaptado. As classes apresentam, em geral, efetivo menos numeroso que o das escolas isoladas, e os alunos se distribuem por elas, segundo os respectivos graus de adiantamento. A um dos professores, seja sem regência da classe, ou também com encargos de ensino, entrega-se a responsabilidade do conjunto. O material é menos precário. Aí temos a escola comum nos meios urbanos (Lourenço Filho, 1940, p. 658).

As aulas no Grupo Escolar iniciavam entre sete e oito horas da manhã. O ensino era pautado na tríade ler-contar-escrever, com enfoque maior nas disciplinas de matemática e de português. As carteiras das salas de aulas variavam, dependendo da seriação, oscilando entre carteiras fixas e carteiras individuais, soltas. Para os alunos e os professores, essa era uma novidade, visto que nas escolas isoladas as carteiras eram duplas (Souza, 2019). Soltas, as carteiras davam outro sentido para aquele espaço restrito, permitiam outros modos de ocupação, uma flexibilidade que se manifestava em um movimento impossível em outras salas de aulas onde as carteiras eram fixas, em que os alunos, matricialmente enfileirados, deveriam olhar o professor na sua cátedra. No Grupo Escolar, a julgar pelos depoimentos, o professor tinha sua mesa à frente da sala, de aparência simples e com os aparatos suficientes: quadro e giz.

Nas falas dos depoentes as características do ensino e da aprendizagem nos revelam que tudo era muito simples, as aulas eram transcritas em quadro. E salientam que este era o único recurso disponível na época. Conteúdos e disciplinas mais teóricos (para eles), como a matemática, e via de regra, a tabuada, eram expostas pelo método decorativo.

Dentre as modalidades de atividades realizadas neste ambiente destacaram-se, nas memórias de nossos depoentes, as aulas de matemática, as provas orais e as provas de leituras. Percebemos, então, como a tríade ler-contar-escrever era seguida com rigor, visto que naquela época ela era necessária e quase sempre suficiente para as pessoas, pois o ensino era baseado num currículo que atendia apenas a necessidade diária das pessoas: naquele tempo um indivíduo que soubesse ler e escrever minimamente e realizar algumas operações matemáticas era considerado escolarizado.

Esse currículo do Grupo Escolar, segundo os relatos, propunha ensinar conteúdos mais simples, que não incluíam qualquer tipo de atividade além das disciplinas básicas. Porém permeiam as falas afirmações de que o ensino era “puxado” e havia rigorosa cobrança por parte dos professores e da diretora. Ressaltam, ainda, que os alunos tinham muito respeito pelos professores.

Considerando a perspectiva de Schelbauer (2014), é pertinente analisar os traços de um modelo de organização escolar configurado por aspectos pedagógicos e arquitetônicos, em que se concretizaram diretrizes pedagógicas bastante diferenciadas daquelas vigentes em outras instituições, implicando a constituição das classes para um ensino homogêneo – em cada sala de aula uma classe referente a uma série; para cada classe, uma professora. Essa classificação dos alunos constituiu uma evolução no sistema educacional, da qual surgiu, então, a noção de classe e série.

A série tornou-se a matriz estrutural, e assim passou a ser realizada a distribuição dos conteúdos, dos horários, as frequências de rotinas diárias, a estruturação das disciplinas compostas por lições, pontos, aulas, exercícios e, ainda, “exames, festas de encerramento, exposição escolares e comemorações cívicas” (Souza, 1998, p. 23).

Nosso olhar investigativo sobre o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes marca as indicações já mencionadas aqui. E podemos, portanto, concluir que o ensino possuía características peculiares e provia o ensino primário completo composto por quatro anos letivos – um ensino seriado, dotado de uma organização pedagógica e outros componentes. Porém, o ideário do ruralismo pedagógico não compunha o seu currículo, que era desprovido de disciplinas voltadas ao mundo rural, como competências de cultivo da terra.

Entretanto, o modelo educacional projetado para os Grupos Escolares tinha muito a contribuir: previa uma organização administrativo-pedagógica que estabelecia modificações profundas e precisas na didática e no currículo, compunha um modelo de organização de ensino mais padronizado, com vistas a atender um grande número de alunos.

Eram muitas as regras, que, segundo os depoimentos, funcionavam por terem sido acordadas pela equipe escolar. Para movimentar-se na escola havia determinações bem definidas, descritas pelos depoentes: formar filas únicas separadas por turma, para entrar e para sair da sala de aula; cantar o hino nacional todos os dias; seguir regras de condutas de comportamento. Os relatos sobre os castigos inseridos nas escolas como parte de punição àqueles que descumpriam as regras trazem à cena não mais cenas de palmatórias ou vara de marmelo, comuns nas escolas por largo período e que deixaram traços da sua presença nas instituições escolares até meados de 1970 (Capelo, 2013), mas situações desconfortáveis para os alunos indisciplinados, tais como ficar de pé no canto da sala. Contudo, isso não significou a abolição dos castigos corporais que geravam humilhação perante os colegas.

Pelas narrativas, percebemos que os castigos eram entendidos como parte do trabalho pedagógico, de modo que os pais não questionavam essa conduta; pelo contrário, reforçavam a necessidade e a concordância com eles. Sendo assim, as infrações das regras expostas podiam acarretar, por parte da diretora, advertência, suspensão, mas, sobretudo, longos sermões e severos castigos por parte dos pais, especialmente se eles fossem chamados para uma reunião com a diretora. Nas narrativas, fica claro que os alunos tinham o único dever de estudar e obedecer.

As memórias dos sujeitos da pesquisa narram uma escola impregnada de conceitos próprios de uma época de consolidação dos Grupos Escolares como instituições públicas de ensino. As vivências desses antigos alunos, no que se refere às práticas educativas desenvolvidas no Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, nos mostram um cenário diferente – com aplicação de castigos e atividades cívicas – do que comumente encontramos nas escolas atuais, embora ainda se mantenham algumas semelhanças com antigas práticas relatadas, como a seriação e seus desdobramentos.

O que se ensinou e se aprendeu na escola rural parece ter ficado como um mito de qualidade (de boa qualidade) na memória daqueles que vivenciaram, principalmente como alunos, o ensino no campo, inviabilizando para esses estudantes, um posicionamento mais crítico quanto ao papel desempenhado pela escola na perda da identidade do homem rural. Mesmo diante dessas várias dificuldades e lacunas, percebemos, nas falas dos alunos rurais, que continuaram seus estudos e que avaliam sua formação como adequada. Na sua visão, a classificação de uma educação de qualidade entra de maneira descompassada com o que aborda a literatura, pois essa nos apresenta a escola rural como um espaço de ensino destoante, devido à falta de fiscalização, e considerado fraco. Muitas vezes, as escolas nem funcionavam. Para os alunos dessa escola, era um espaço modelar de ensino, exemplar.

O uniforme escolar, com suas marcas, texturas, cores, ao mesmo tempo em que ajudou a delimitar um espaço escolar e a estabelecer áreas e espaços em que sua razão e suas leis eram vigentes – inclusive, às vezes, do lado de fora da escola: sempre que vestisse um uniforme, era preciso comportar-se como um escolar –, também foi atravessado pelos tempos e definiu uma presença política da escola na sociedade. Buscando comparações das escolas urbanas com as escolas rurais, encontramos traços das manifestações ao uniforme escolar, às vestimentas tão importantes para até limitar dentro e fora da escola (Bencostta, 2012).

Nossas narrativas revelaram que o uniforme no Grupo Escolar não era obrigatório, e verificamos que algumas normatizações com relação ao uso dele, dentro do contexto escolar, não se faziam presentes em todas as escolas. O uso do uniforme no Grupo Escolar, por conta da realidade social do povo que ali estudava, era flexível e passou a ser dissociado das normas da escola, para que o acesso a ela fosse possível a todos, sem vincular-se ao uso do uniforme.

Esse exemplo nos permite ver que a escola não foi uma instituição homogênea e unificada. mas, como já assinalamos, uma montagem provisória de práticas sobre o tempo, os saberes e as pessoas, que não se definem somente sobre as paredes ou pelas formas de regras estatais, pois implicam também complexas interações em várias direções. , Não obstante, definir uma vestimenta própria e codificar uma série de interações e regras sobre seu uso não constituía uma regra para o Grupo Escolar. Podemos desencadear aqui algumas indagações que se tornam importantes nesse caso: como o Grupo Escolar consegue orientar e conduzir essa operação? Quais condutas quando e até quando, permitem entender a rede de relações e regras estabelecidas na escola e, sobretudo, as diferenças entre escolas urbanas e escolas rurais, que as tornam dissociadas?

As narrativas, em especial as das professoras, nos presenteiam com a valorização social do professor naquela época, enfatizam o respeito que recebiam dos alunos e deixam ver que toda essa valorização vinha da importância dada à educação e da representação sobre a profissão docente, pois o professor era visto como o responsável pela formação do povo, o elemento reformador da sociedade, o portador de uma nobre missão cívica e patriótica.

Essas professoras se dedicaram para além do ensino das disciplinas escolares, no que se refere à apropriação dos saberes escolares, mas também aos serviços e às práticas que a escola podia oferecer à família, sobretudo à mãe trabalhadora rural, no cuidado dos seus filhos, no tempo dedicado às crianças e no fornecimento de alimentação, pela merenda escolar. Essas professoras também “plantaram”, naquelas terras, novas condições de vida.

O discurso, presente nas narrativas, de que muitos sacrifícios foram necessários para atuar em escolas rurais não está ligado apenas ao ideal de “levar” o conhecimento aos estudantes. O sacrifício era necessário por ser a escola rural – via de regra – o início natural da carreira docente ou um início do último estágio da formação anterior à docência, porque o professor via a carreira se iniciando, realmente, com a efetivação da docência na zona urbana. A zona rural serve, nesse sentido, a aspirações individuais de desenvolvimento profissional, configurando-se como uma terra de passagem.

A formação dos professores que ensinavam matemática nas escolas primárias era bastante lacunar, mas os conteúdos a serem ensinados eram bastante variados, embora nem sempre fossem cumpridos plenamente (Capelo, 2013). Havia muita ênfase no sistema decimal — praticamente restrito à contagem —; nas quatro operações fundamentais; na resolução de problemas, que consistia, na verdade, em problemas de aplicação; e nas tabuadas do dois ao nove, decoradas.

Nas aulas de matemática, contam os alunos, as professoras enchiam o quadro com exercícios e soluções, que eles precisavam acompanhar com máxima atenção e copiar no caderno. Compunham o processo de avaliação as chamadas orais, os exames finais, as provas escritas, as provas de leituras e as provas de tabuada. Acreditava-se, também, que para ensinar um conteúdo era necessário lançar mão de uma grande quantidade de exemplos de situações específicas.

Nossos depoentes, entretanto, nos dizem que, em geral, não havia problemas significativos de indisciplina com alunos e que, quando havia, a equipe pedagógica agia em conjunto, dando suporte ao professor e também ao aluno que apresentava dificuldades de comportamento, de acordo com os preceitos do Grupo Escolar.

Além dessas nossas disposições, a existência histórica de uma instituição educativa revela-nos, por detrás da integridade de uma escola, o quadro de evolução de uma comunidade ou de uma região, aborda um itinerário de vida na sua multidimensionalidade. O Grupo Escolar aqui tematizado foi uma escola importante para a comunidade em que estava inserida: apresentava uma diversidade de características, próprias de sua identidade, fronteiras, línguas, cultura e futuro. Além de características que são atribuídas a toda escola e a cada escola em especial, o Grupo Escolar é singular, é uma montagem em um tempo que carrega a história de um povo que passou pelos seus bancos escolares.

Olhar para a escola como um fazer existir, além da sua função ou dissolução, é um movimento que consiste em parar para pensar. Se, conforme Larrosa (2016), a experiência requer um gesto de interrupção, esses movimentos talvez possam ser encarados como espaços de possibilidade.

O fio da montagem é valioso, e seria preciso segui-lo. Na época da informação “sem fim” do arquivo para-humano da cultura [ênfase no original], talvez escola seja o espaço para aprender a cortar, a deter-se, a criar uma série distinta, e exercitar-se nisso. Profanar é problematizar, questionar, acercar-se de perspectivas distintas, interrogar com linguagens novas aquilo que já se tinha visto ou acreditado. Seria preciso ensinar a perdurar nesses gestos, e daí o valor do exercício cotidiano. O elogio da precariedade da escola passa por apreciá-la, cuidar dela, expandi-la, para que não se estabilize nem no efêmero nem no descartável, mas como uma condição vital de uma montagem que está sempre à beira de sua destruição, mas também em movimento, aberto, capaz de apresentar o mundo e de ajudar a criar novas montagens, imaginando outros futuros (Larrosa, 2017, p. 109).

CONSIDERAÇÕES

A história da educação escolar caipira, constituída nos desvãos da história oficial da educação brasileira, vai, pois, trilhando caminhos distintos daqueles seguidos pelos alunos e pelos professores dos grandes centros.

Desalinhar o olhar e perspectivar provoca pensar que esses valores escolares necessitam, sobremaneira, ser permanentemente (re)construídos em suas recorrentes intervenções do que é uma escola e do seu modo de existir. Percebemos que, obviamente, ao tratarmos do lugar da escola, estamos tratando do que se ensina, de como se ensina. Porém, há que se perguntar o que ocorre que, no interior da escola, persistem outros espaços, outras temporalidades, entre lugares e não lugares que, talvez, se façam ocultos pelas lentes dos olhares possíveis que insistimos em voltar à escola. Buscamos inverter o olhar, o ângulo pelo qual olhamos a escola,

[...] podemos afirmar, talvez, que o tempo é um componente importante para a escola e para os sujeitos que lá estão em relação. A intenção aqui é perguntar–se sobre a escola como um espaço onde sujeitos se invadem, se põem a sentir, ver e pensar, em pura interdependência, ainda que cada qual habite seu lugar (Larrosa, 2017, p. 30).

Longe de pretender dar conta dessas questões que são históricas, é necessário ressaltar que o mapeamento da educação rural que vem sendo tema do Grupo História Oral e Educação Matemática – GHOEM (Fernandes, 2018) encontra escolas bastante semelhantes, quando se trata do conjunto arquitetônico, mas muito diferenciadas do ponto de vista social. Talvez aqui esteja a diferença – cada escola e, em especial a escola rural, constitui-se, simultaneamente, como um espaço de socialização e de sociabilidade. Portanto, as redes de relações tecidas no seu interior compõem quadros sociais diversos. Além das diversas formas de inserção social e econômica no mundo rural, decorrentes da localização das escolas em grandes fazendas, em pequenas propriedades rurais, ou em assentamentos, existem as diferenças que perpassam as classes sociais e as etnias.

No entanto, por meio das versões históricas, essa é uma maneira de conceber uma realidade educacional. Quiçá, outro olhar, um olhar mais contemplativo, que possa ajudar a escola rural a se liberar das amarras da literatura clássica e nos possibilite entender a realidade educacional de modo mais sutil e aberto. E assim, poderemos até mudar nossas perguntas, as narrativas nos lançam para uma nova perspectiva. Um tempo de ouvir, de sentir e de aprender. Um tempo de escola.

Este Grupo Escolar é um retrato de uma escola rural que estabeleceu suas próprias regras, suas condutas, relacionando-se com a comunidade e atribuindo ao seu contexto marcas de uma escola que buscava se encaixar na realidade comunitária. Edificou seu espaço para comportar os alunos, ensinou saberes para a população se tornar alfabetizada. Corroborando o que afirma Lopes (2016, p. 133), essas histórias apenas dizem de um lugar. De um chão. De uma realidade. Mas, de um modo ou de outro, essa é a realidade de muitas escolas, de muitos professores, de muitos alunos. Uma realidade estampada Brasil afora.

A durabilidade discursiva e as narrativas produzidas por nós sustentam que o vínculo da escola com a humanidade é profundo e múltiplo. Finalizamos este texto com as palavras de Larrosa (2017, p. 96): “a escola precisa de condições discursivas que afirmem a sua importância e centralidade para a transmissão de uma cultura; sem essa legitimidade, o que realiza tem poucas chances de perdurar”.

São potencialidades em movimento: o Grupo Escolar é incerteza, é memória, é orgulho, é referência e é, também, possibilidade.

Referências

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Notas

[1] Mestre em Ensino de Matemática, Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR-CP). Endereço para correspondência: Rua José Pedro, 210, Jardim União, Bandeirantes, Paraná, CEP: 86.360-000. E-mail: grasiellysantossouza@yahoo.com.br
[2] Doutora em Educação Matemática, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Rio Claro). Professora de Magistério Superior, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Curitiba (UTFPR – CT), Curitiba, Paraná, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Sete de Setembro, 3165, Departamento de Matemática – Bloco F, Rebouças, Curitiba, Paraná, Brasil, CEP: 80230-901. E-mail: andrade.mirian@gmail.com
[3] As textualizações, juntamente com as cartas de cessão de cada depoente, encontram-se disponíveis em Souza (2019).
[4] Na análise de singularidades, proposta por Martins-Salandim (2012), consideramos as vozes que nos contaram sobre as situações vivenciadas no Grupo Escolar. Tal análise nos dá suporte para realçar as singularidades de cada depoente e, por meio delas, evidenciamos e registramos concepções sobre a escola aqui tematizada. Na perspectiva da autora, a análise de singularidades pode ser entendida como um processo de sistematização de uma etapa analítica que intenciona registrar, por meio do ponto de vista do pesquisador, aspectos que caracterizam os entrevistados e os depoimentos compostos a partir de uma entrevista. Neste sentido, “buscamos registrar nossas percepções de como cada narrativa apresenta-se, seu fio condutor, suas marcas” (Martins-Salandim, 2012, p. 242).
[5] “As escolas isoladas apresentavam suas instalações levantadas de madeira, nessas escolas predominava o improviso, devido ao fato de serem constituídas por mobiliário e materiais didáticos insuficientes. As aulas eram transcritas no quadro de giz, geralmente dividido em três ou quatro partes, conforme o seu tamanho e de acordo com o número de séries constantes na mesma sala, o que caracterizava um ensino multisseriado, devido ao fato que essas escolas isoladas possuíam, geralmente, uma única sala de aula, o que exigia da professora dominar os conteúdos relacionados às quatro séries, trabalhando-os simultaneamente com os alunos” (De Souza & Andrade, 2020, p. 92).


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